quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

para ele


Num dia qualquer da semana passada eu cheguei em casa, depois de um longo dia de trabalho, respondi meus emails, jantei, liguei a TV e estava passando As Praias de Agnès, da minha musa Agnès Varda. Não sei se foi o cansaço, o tema, ou o filme em si, só sei que eu fiquei extremamente tocada. Eu adoro a maneira como a Agnès se mostra e fala com a gente, como se nós fossemos o diário dela, um dia eu quero fazer filmes tão corajosos e delicados quanto os dela.

A parte do filme que mais me tocou foi quando ela falou do Jacques Demy e de quando ele morreu. Ela falou (pq ela fala mesmo, ela me contou, ali no quarto onde eu via o filme) que quando o Jacques morreu de AIDS ninguém falava sobre esse assunto, então eles passaram uma época de sofrimento silencioso, só compartilhado os amigos mais íntimos, que só podiam ajudar dando amor, já que ninguém sabia ao certo como lidar com aquela doença. A única forma que a Agnès viu de lidar foi filmando seu companheiro que estava morrendo, essa era a única saída que ela via, registrar a imagem da pessoa que ela amava (ama ainda), que estava indo, mas estava ali, por pouco tempo, mas ainda estava. Além de ela filmar ele em casa, na praia, com a família... ela fez também um filme sobre a infância do Jacques, baseado nas memórias que ele escrevia todo dia e pedia para ela ler a noite. A Agnès contou que fazia aquilo para ele, mas se sentia meio insegura de estar mostrando as coisas como ela às via, não como elas eram na cabeça dele, até o dia que o Jacques disse pra ela que aquilo estava exatamente como ele lembrava, e ele agradecia a ela por estar fazendo algo tão bonito – depois desse comentário todos os takes onde ela aparece filmando esse projeto, ela está sorrindo. O Jacques morreu 10 dias depois que esse filme ficou pronto.

Eu sempre tive uma quase-obsessão por projetos fotográficos que envolvem pessoas morrendo (quando vi o Days with my father – fotos do Phillip Toledane, que foi morar com o pai dele depois que a mãe morreu e fez fotos sobre esses dias - eu chorei compulsivamente por 30min; quando vi o Photo of the Day – projeto onde o Jamie Livingston tirou uma Polaroid por dia, todo dia, desde o momento em que ele soube que estava com câncer até ele morrer - eu só conseguia pensar nisso por 3 dias; e desde o dia que eu vi as fotos do Noch Mal Leben – livro que mostra fotos de pacientes terminais momentos antes da morte e depois que faleceram - é só eu fechar o olho que eu consigo lembrar exatamente das fotos, como se tivesse visto elas agora) e eu nunca tinha entendido isso até hoje, até ver esse filme. A morte é uma coisa que eu não tenho quase nenhuma proximidade (tirando o fato dos pais de duas das minhas melhores amigas terem morrido ano passado), pq nenhum familiar próximo meu já morreu, nem nenhum amigo próximo, e eu me sinto uma pessoa muito muito sortuda por isso. Mas o fato de isso ser um mistério tão grande pra mim faz com que eu tenha muito medo do momento em que eu terei que encarar a morte. Ano passado o meu irmão e minha mãe tiveram câncer e foi muito foda lidar com isso, lidar com a delicadeza e a fragilidade da vida de duas das pessoas que eu mais amo nessa vida. E como eu lidei? Eu fotografava ou me deixava ser fotografada. A primeira vez que eu pedi pra ser fotografada foi um pouco depois do diagnóstico do meu irmão sair, talvez eu estivesse fazendo aquilo para me registrar, para ter pelo menos uma pequena certeza de que em algum lugar eu ia ficar guardada, já que tudo é tão incerto e duvidoso.

E por uma grande e gorda ironia da vida, semana passada eu recebi um telefonema do meu avô, que é uma das pessoas mais maravilhosas que esse mundo já viu, me dizendo que ele tinha que me entregar o ampliador fotográfico dele, me ensinar a mexer nas fórmulas de revelação e ampliação e conversar sobre fotografia comigo pq “eu não vou estar aqui por muito tempo, hijita”, ele me disse. Essa ligação me arrasou. Eu chorei muito (Alex Rocca, querido, que por uma sorte de Deus estava comigo, bem sabe disso...) e me senti muito mal por morar longe e não poder ir naquele momento pra Londrina pra sentar e ouvir ele falar tudo sobre todas as fotos que ele já tirou, que era o que eu queria (e vou) fazer (logo, espero). E o que eu pensei em fazer depois disso? Um projeto fotográfico ou um filme sobre meu vô. Tudo isso só me faz pensar que eu não sei bem lidar com as coisas de uma forma racional e lógica, eu preciso de uma imagem ou de um gesto pra explicar o quanto aquilo me doeu e como eu não sei lidar com o medo que eu tenho de perder ele, que é enorme. Eu podia simplesmente ligar pro meu vô e dizer “vô, eu te amo pra caralho e eu to com muito medo de te perder desde o dia em que vc me ligou. Eu sei que o tempo passa e que eu não tenho controle sobre isso, mas isso não faz com que eu me sinta melhor ou que eu aceite o fato de que só me resta entender que vc daqui a pouco já vai. Mas o que importa agora é que eu te amo e quero que vc saiba disso”, pq tudo isso é verdade. Mas ao invés disso eu quis postar essa foto aí em cima, eu quis aparecer com a câmera dele aqui, colocar todo esse texto nesse blog pra tentar tirar de dentro de mim tudo isso que me dói a um tempinho, apesar de eu achar que todo esse texto poderia ir pro lixo e restar só a foto, que pra mim está muito mais cheia de amor e significado.